INTRODUÇÃO
O álcool é a substância psicoativa (SPA) mais consumida em todo o mundo e gera prejuízos individuais, familiares, sociais e laborais. O consumo dessa substância tem conotação diferenciada das demais SPAs, pois apresenta caráter lícito e acesso facilitado, o que lhe fornece aceitação social e dificulta seu enfrentamento.1
Estima-se que 237 milhões de homens e 46 milhões de mulheres sofram com transtornos relacionados ao consumo de álcool, sendo as maiores prevalências na região europeia (14,8 e 3,5%, respectivamente) e na região das Américas (11,5 e 5,1%, respectivamente).2
Mudanças no paradigma social da mulher levaram a considerável crescimento do consumo feminino de SPA. As primeiras aproximações se dão no período da adolescência e sofrem grande influência do contexto social e familiar na iniciação desse uso.3
Quando o grupo de risco é de gestantes e puérperas, esse problema ganha mais repercussão, pois os resultados atingem diretamente outra vida. Alta prevalência de consumo de álcool por gestantes tem sido verificada no Canadá, com 10,8%, e nos Estados Unidos. com 10,4%.4-5 No Brasil, estudo mostra que de 251 gestantes que consumiram álcool durante a gestação, 12,7% o fizeram por mais de uma dose padrão diariamente ao longo de, no mínimo, um trimestre da gestação, tipificado como uso excessivo de álcool.6
Destaca-se que não são estabelecidos níveis seguros de exposição ao álcool para gestantes, uma vez que até mesmo o consumo moderado pode suscitar danos ao feto. Nesse sentido, qualquer padrão de consumo dessa substância na gestação é considerado de risco, sendo recomendada a abstinência entre gestantes e mulheres com intenção de engravidar.6
Embora se tenha um panorama estatístico de vários locais sobre o consumo de drogas por gestantes, esse é ainda um problema que persiste na realidade piauiense, o que torna imperativa a realização e divulgação desses estudos, com vistas a poder contribuir para direcionar políticas de atenção à saúde da mulher no período gestacional, no sentido de reduzir a morbidade e mortalidade materna e pediátrica. Portanto, este estudo buscou responder à seguinte questão de pesquisa: mulheres gestantes estão ingerindo bebidas alcoólicas?
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi rastrear o consumo de bebidas alcoólicas em gestantes atendidas na atenção primária do Piauí, Brasil.
MATERIAL E MÉTODO
Estudo transversal realizado em cinco municípios, sedes regionais de saúde do estado do Piauí, Brasil (Teresina, Picos, Parnaíba, Floriano e Bom Jesus) no período de agosto de 2015 a março de 2016.
Para cálculo da amostra, inicialmente levantou-se o universo de mulheres em idade fértil7 atendidas nas UBS dos municípios (n=3.350). Considerou-se a prevalência presumida de consumo de álcool entre mulheres adultas de 39%8, nível de confiança de 95% e erro tolerável de 5%, obtendo-se a amostra de 369 mulheres. Realizou-se estratificação proporcional entre os cinco municípios.
Estabeleceram-se como critérios de inclusão: mulheres atendidas em consultas de Enfermagem e cuja faixa etária estivesse entre 20 e 59 anos.7 Foram excluídas aquelas com dificuldade de comunicação verbal, uma vez que a coleta de dados se faria por meio de diálogo com as entrevistadas.
Para operacionalização do sorteio e posterior recrutamento das mulheres, utilizou-se o software Excel 2010, considerando-se listagem numérica das mulheres atendidas nas respectivas UBS. A abordagem às mulheres era feita a partir de parceria entre a enfermeira e a equipe de coleta de dados durante a consulta de Enfermagem. O tempo médio para a obtenção dos dados foi de 30 minutos. Após o rastreamento entre as 369 mulheres pesquisadas, identificaram-se 75 gestantes. Destaca-se que não houve perdas amostrais.
A coleta de dados foi realizada por membros treinados do Grupo de Estudo Sobre Enfermagem, Violência e Saúde Mental da Universidade Federal do Piauí, que aplicavam um formulário estruturado, construído pelo grupo, contendo questões referentes às variáveis socioeconômicas e condições de saúde. Para o rastreamento do uso excessivo de álcool utilizou-se o Alcohol Use Desorders Identification Test (AUDIT) - instrumento desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde9 e validado no Brasil.10 Trata-se de instrumento simples, composto de 10 questões, cada uma com margem de zero a quatro pontos. A prevalência do consumo de álcool foi detectada por meio da primeira questão do AUDIT (com que frequências você consome bebidas alcoólicas?). Assim, atribuiu-se o valor “0” (não) quando a entrevistada referiu nunca ter consumido bebidas alcoólicas (opção 0) e “1” (sim) quando o consumo foi positivo em alguma frequência (opções um a quatro).
Com o intuito de detectar possíveis dificuldades na compreensão do formulário e do instrumento de rastreio pelas potenciais participantes, realizou-se um pré-teste com 10% da amostra em locais não selecionados a partir do processo de amostragem. O pré-teste garantiu a utilização dos instrumentos.
Os dados obtidos foram codificados e organizados em planilhas do software Microsoft Excel 2010 mediante processo de dupla digitação, com exportação para o programa Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 22.0, no qual se procedeu à análise estatística. Foram realizadas estatísticas descritivas, como medida de tendência central (frequência simples).
O estudo atendeu às exigências de pesquisas com seres humanos, conforme Resolução nº. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (Parecer nº. 985.391).
RESULTADOS
Entre as gestantes que consumiram álcool nos últimos 12 meses da pesquisa, observa-se no Gráfico 1 a prevalência, identificada a partir do AUDIT, de 40% (n=30). Destas, 28,0% (n=21) informaram consumo mensal ou menos, 10,7% (n=8), de duas a quatro vezes por semana e 1,3% (n=1) de quatro ou mais vezes na semana (Figura1).

Figura 1 Prevalência do consumo de bebidas alcoólicas e padrão de consumo pelas gestantes nos últimos 12 meses. Teresina, Piauí - Brasil, 2019 (n=75)
Quanto aos níveis de risco, constatou-se, pela aplicação do AUDIT, que das 30 gestantes que relataram o uso de bebida alcoólica, 80,0% (n=24) estavam inseridas na zona I (uso de baixo risco) e 20,0% (n=6) na zona II (uso de risco) (Figura 2).

Figura 2 Níveis de risco de bebidas alcoólicas pelas gestantes nos últimos 12 meses. Teresina/Piauí/Brasil, 2019 (n=30)
Na análise do rastreio do consumo de bebidas alcoólicas e sua relação com dados sociodemográficos, observa-se que das 24 gestantes que estavam em uso de baixo risco, houve predomínio da faixa etária de 20 a 29 anos (62,5%), com mais de oito anos de estudo (79,2%), renda abaixo de um salário mínimo (70,8%), com companheiro (75,0%), não brancas (79,2%) e católicas (79,2%). Em relação às gestantes que fazem uso caracterizado como de risco, predominaram a faixa de etária de 20 a 29 anos (83,3%), escolaridade acima de oito anos de estudo (100%), renda de um a dois salários mínimos (66,7%), com companheiro (100%), não brancas (83,3%) e católicas (83,35%) (Tabela 1).
Tabela 1 Rastreio do consumo de bebidas alcoólicas em gestantes pelo AUDIT e sua relação com variáveis sociodemográficas. Teresina, Piauí - Brasil, 2019 (n=30)
Variáveis | Consumo de bebidas alcoólicas | |||
---|---|---|---|---|
Uso de baixo risco | Uso de risco | |||
n | % | n | % | |
Faixa etária | ||||
20-29 anos | 15 | 62,5 | 5 | 83,3 |
30-39 anos | 9 | 37,5 | 1 | 16,7 |
Escolaridade | ||||
Até 8 anos de estudo | 5 | 20,8 | - | - |
> 8 anos de estudo | 19 | 79,2 | 6 | 100,0 |
Renda* | ||||
1 a 2 salários mínimos | 6 | 25,0 | 4 | 66,7 |
> 2 salários mínimos | 1 | 4,2 | - | - |
Situação conjugal | ||||
Sem companheiro | 6 | 25,0 | - | - |
Com companheiro | 18 | 75,0 | 6 | 100,0 |
Raça | ||||
Branca | 5 | 20,8 | 1 | 16,7 |
Não branca | 19 | 79,2 | 5 | 83,3 |
Religião/crença | ||||
Católica | 19 | 79,2 | 5 | 83,3 |
Evangélica | 2 | 8,3 | 1 | 16,7 |
Espírita | 1 | 4,2 | - | - |
Nenhuma | 2 | 8,3 | - | - |
Total | 24 | 100,0 | 6 | 100,0 |
*O salário mínimo de referência no período da coleta de dados = R$ 788,00
Considerando as variáveis gestacionais e condições de saúde das gestantes que estão na zona de baixo risco, a maioria relatou ter planejado a gestação (62,5%), ter gestação anterior (54,2%) e sem morbidade (91,7%). Das gestantes em uso de risco, identificou-se que 83,3% não planejaram a gestação, 66,7% tiveram gestação anterior (66,7%) e 83,3% sem morbidade (Tabela 2).
Tabela 2 Rastreio do consumo de bebidas alcoólicas e sua relação com dados gestacionais e condições de saúde. Teresina, Piauí - Brasil (n=30)
Variáveis | Consumo de bebidas alcoólicas | |||
---|---|---|---|---|
Uso de baixo risco | Uso de risco | |||
n | % | n | % | |
Planejamento da gestação | ||||
Não | 45 | 62,5 | 5 | 83,3 |
Sim | 9 | 37,5 | 1 | 16,7 |
Gestação anterior | ||||
Não | 13 | 54,2 | 2 | 33,3 |
Sim | 11 | 45,8 | 4 | 66,7 |
Presença de morbidade | ||||
Não | 22 | 91,7 | 5 | 83,3 |
Sim | 2 | 8,3 | 1 | 16,7 |
Total | 24 | 100,0 | 6 | 100,0 |
DISCUSSÃO
No presente estudo, ao se realizar o rastreio do consumo de bebidas alcoólicas em gestantes nos últimos 12 meses, apurou-se prevalência de consumo de 40% do grupo pesquisado, com padrão de consumo mensal e semanal e uso de risco em 20%. No Brasil, a prevalência do uso de álcool na gestação varia conforme a localização geográfica. Em Maringá, Paraná,11 a prevalência levantada foi de 6,1%; em São Luís, Maranhão,12 22,32%; e no estado de Goiás, de 17,7%.13 Em todas as regiões observa-se alta prevalência desse consumo durante o período gestacional.
No cenário internacional, pesquisa realizada em Portugal entre janeiro de 2010 e dezembro de 2011 com 753 imigrantes e 1.654 portuguesas com média de idades de 29 anos informa que 8,3% da amostra mencionaram ter ingerido bebidas alcoólicas durante a gravidez. E entre as que ingeriram, a maior percentagem recaiu sobre as imigrantes (12,0%) e 6,6% entre as portuguesas.14
A aplicação do AUDIT neste estudo acusou que 80% das gestantes estavam na zona de baixo risco para uso de bebidas alcoólicas e 20% na zona de risco. São dados preocupantes e que merecem a atenção de mulheres no período de pré-gestação e gestação, quiçá em todos os períodos do viver feminino, tendo em vista as graves consequências desse consumo. Durante a gestação, o consumo de bebidas alcoólicas pode levar ao desenvolvimento de complicações na gravidez e resultar em problemas para a mãe e recém-nascido.
Em Uberlândia, região Sudeste do Brasil, dados levantados pelo AUDIT mostrou consumo alcoólico em 67,1% da amostra, sendo de baixo risco ou abstinência em 47,3%, uso de risco 14,8% e nocivo ou provável dependência 5%.15
Nos dados levantados neste estudo predominaram gestantes na faixa etária entre 20 e 29 anos. E esse predomínio de adultas jovens em idade reprodutiva é resultante de uma cultura que exerce influência no uso de drogas lícitas, permeando a aceitação, apesar dos problemas decorrentes do uso.16
A maioria das gestantes tinha oito anos ou mais de estudo. Resultado similar foi encontrado também em estudo realizado com 394 gestantes usuárias de um serviço de atenção primária, quando se verificou que 48,6% das gestantes usuárias tinham entre nove e 11 anos de estudo.11 Entre as características socioeconômicas das gestantes, o dado da renda mostrou mudança de acordo com a zona de risco. Daquelas que estão em uso de baixo risco, a renda que prevaleceu foi menor que um salário mínimo e daquelas em uso de risco a renda foi de um a dois salários mínimos. Já a situação conjugal, no presente estudo, mostrou predomínio de gestantes com companheiro. Semelhante dado foi observado em estudo realizado em São Luis, Maranhão, onde 80,2% residiam com o companheiro.12
Nesta pesquisa houve predomínio de gestantes que se autodeclararam pertencentes à raça não branca. Esse percentual é condizente com o perfil da população encontrada em outro estudo no qual o percentual de não brancas foi de 12,2%.17
No tocante à religião, houve maior frequência da católica. Pesquisa desenvolvida com 268 gestantes em uma maternidade pública do município de Salvador revela que a religião é indicada como facilitadora para o enfrentamento e o fortalecimento da mulher diante das condições de dominação na família ou nas relações sociais. Possibilita o fortalecimento pessoal na busca de soluções para situações adversas ou indesejadas, assim como proporciona ressignificação da gestação e consequente cautela e responsabilidade nesse período.18
A variável planejamento da gestação foi referida como não planejada. Na variável gestação anterior e existência de morbidade, houve predomínio das gestantes inseridas na zona de baixo risco sem gestação anterior e na zona de risco com gestação anterior. Gestações planejadas, diferentemente das que não são, costumam ser tranquilas e saudáveis, pois normalmente trata-se de uma criança desejada tanto pela mulher quanto pelo parceiro e são capazes de fazer com que a mulher supere estilo de vida não adequado e passe adotar novos hábitos, que incluem a redução ou até mesmo a abstinência do consumo de substâncias psicoativas. Ademais, o uso de SPA é preditivo da gravidez não planejada e não adesão ao uso de métodos contraceptivos entre mulheres na faixa etária de 16 a 44 anos.19
Ao considerar as consequências adversas para a saúde das gestantes advindas desse consumo, estes resultados podem ter diversas implicações e alerta para os serviços, entre elas, melhor coordenação entre os serviços de prevenção e apoio às gestantes, bem como a sensibilização do enfermeiro e dos demais profissionais de saúde sobre a temática, a qual deve ser constantemente debatida nos serviços de saúde, em especial, na atenção primária.
Na limitação deste estudo destaca-se a utilização do delineamento transversal, uma vez que este impossibilita a definição de causalidade entre o consumo de álcool por gestantes e suas consequências à mãe/concepto.
CONCLUSÃO
Os resultados do estudo mostraram alta prevalência do consumo de bebidas alcoólicas em uma mostra de mulheres gestantes, sendo o padrão desse consumo mensal e semanal. Esses achados demonstram a importância do rastreamento do consumo de bebidas alcoólicas entre gestantes na atenção primária. O rastreio torna-se pertinente, tendo-se que o consumo de bebidas alcoólicas é um agravo que traz sérias repercussões para a gestante e o feto, dessa forma, o conhecimento do consumo de bebidas alcoólicas e do padrão de consumo pelas gestantes pode ser utilizado para observar aspectos da saúde materno-infantil e para priorizar ações de educação em saúde.
Ademais, o rastreio do consumo de álcool entre mulheres em idade fértil como rotina na área de saúde da mulher, planejamento familiar e pré-nata, deve ser considerado parte de ações prioritárias e com o objetivo de verificar situação epidemiológica e traçar medidas de intervenção.